Bendita seja a Santíssima Trindade
Em Nova Déhli ou no céu tupiniquim
Ronca na pele do tambor da eternidade
O amor da Mocidade, sem início, meio e fim
Kamadhenu derrama leite em nosso terreiro
Ganesha tem licença do cruzeiro
Desemboca o Ganges cá no Rio de Janeiro
Os filhos de Gandhi hoje são brasileiros
Brahma foi quem guiou velas de Portugal
E trouxe a Índia ao Gantois da mãe querida
Padre Miguel chamou Shiva pro carnaval
E namastê pra todo povo da avenida
Hora de se benzer
Hora de ir ao mar
Colher o sal da liberdade
Há tempo ainda!
Desobedecer pra pacificar
Como um dia fez a Índia
Theresa de Calcutá
Oh, santa senhora! oh, madre de luz!
Venha para iluminar
Esse povo de Vera Cruz
Clama o meu país
E a flor de lótus, símbolo da paz
E a vitória-régia da mesma raiz
Pela tolerância entre os desiguais
Deite e holi
Nesse triunfo do bem e da fé
Nehru, Dom Hélder, Chico Xavier
Rezem pra Índia e pro Brasil, ôô!
Vídeo com o samba da Mocidade em 2018
Veja também:
- Samba da Mocidade Independente de Padre Miguel em 2017
- Samba da Mocidade Independente de Padre Miguel em 2019
Sinopse do enredo da Mocidade em 2018
Carnavalesco e autor do enredo – Alexandre Louzada
Autor da sinopse – Fábio Fabato
Introdução
O início, o fim e o meio, quando olhamos para o alto, são as estrelas. Aqui e em qualquer lugar do planeta. E é junto delas que mora Kamadhenu, divindade que toma a forma de uma vaca sagrada e flutua na agitação do oceano cósmico, mãe celestial, provedora da abundância. Segundo os escritos hindus, lá de cima, com suas tetas abençoadas, jorra o leite, alimento primeiro da vida, e consegue realizar todos os sonhos. Bem, o início, o fim e o meio dessa história são formados por encontros que parecem escritos justamente nas estrelas. A partir da Via Láctea, chamada de rio Ganges do céu, desce o líquido da inspiração que irriga nossa escola e torna possível o congraçar de duas terras. A bênção para o casamento começa no deus Brahma (início), então adormecido no azul, e que desperta para conceber o universo todo. Depois, aparece Vishnu (meio), a energia mantenedora dessa criação esplendorosa. Shiva (fim), o deus da transformação de todas as coisas, a dança das possibilidades do destino, energia que movimenta a invenção e a destruição do que existe, completa a Trimúrti, trindade suprema que nos abre alas – à moda do que acontece nos terreiros de samba. Eis a permissão superior para rufarem os tambores de nossa festa, com Rama e Sita nos cuidados para a perfeita harmonia, e Ganesha, força contra os obstáculos, sinalizando evolução livre nessa Avenida da utopia real. Hora de abrir a cortina do passado.
Sinopse do enredo
Namastê. A estrela que habita em mim saúda a que existe em você
E vem então a clássica cena do navegante vidrado no mar a ser desbravado. O início, o fim e o meio da jornada rumo ao desconhecido, ao lado das estrelas, eram águas salgadas e bravias, a primeira imagem, e também a derradeira, a dobrar a curva imaginária lá no horizonte. Ele se jogou. Por descuido ou conveniência, o português errou o caminho rumo ao oriente na rota das especiarias e foi dar, vejam só!, no litoral brasileiro, redescobrindo o já descoberto por aqueles a quem, preguiçosamente, resolveu chamar de índios. Velas ao vento, sem saber ou muito sábio (vá saber.), enamorou as partes “Índias”- religiões, formações, culturas, desigualdades sociais e independência suada – unindo-as, mesmo que com oceanos de distância. A pluralidade de tais extensões permitiu a incorporação de valores, sabores, olores, salpicando estilo indiano no cenário indígena natural. Já que sem a Índia talvez nem houvesse este Brasil de agora, foi saudação fluida, gostosa, num troca-troca de peculiaridades que se tornaram jeitinhos nossos. E o tempo tratou de gravar n’alma.
“Namastê!”, a essência estrelada que habita em mim saúda a que existe em você. Apesar de significar cumprimento, a expressão encantou-se com a intenção de reconhecer o ser que existe no outro. E este Pindorama tropical, convidativo e miscigenado viu brotar por cá um pouco mais de poesia e identidade do que nos ensinam no colégio. Se daquela enorme porção de Ásia ecoavam histórias de guerras, conquistas e amor – como a do palácio de pedras preciosas que virou a mais bela prova do sentimento de um monarca por sua escolhida – por aqui também brilhavam sagas verdadeiras ou fantásticas. Sim, os nossos índios adoravam astros, transmitiam lendas, e havia no ar um etéreo enlace geográfico já em flor. Prima-irmã da asiática flor de lótus, adereço de Brahma, a vitória-régia nasceu da paixão da índia Naiá por Jaci, ou Lua, obra divina de Tupã – o trovão supremo da criação, sopro da vida. A partir de encontros assim entre crendice e realidade, e que redesenhavam – várias vezes à força -, a natureza genética, social e econômica da terra antes virgem, aconteceu o primeiro beijo com a Índia. E ele deixou um gostinho doce nos lábios.
Fato é que a cana-de-açúcar veio encantadora de longe, ganhou status de grande riqueza agrícola, motor do Gigante inda menino. E aí, sem doçura qualquer, mas de um azedume dos diabos, impôs a estrutura desigual da sequência – escravocrata por desviado princípio. “Ringe e range, rouquenha, a rígida moenda” e, daqueles arranhões e ruídos que arrepiavam o engenho, saíram o açúcar, a garapa e, como não?, a boa e velha pinga, fino da nossa bossa. Além disso, a Colônia iria conhecer o poder das joias, da seda, danças, e um curioso cheirinho bom que enfeitiçou o cangote da nobreza. Deu em revolução na moda das sinhás que andavam sobre liteiras, algumas inspiradas no transporte da elite indiana. O sândalo perfumou os leques que, no vaivém para espantar o calor do Verão naquele precário e apaixonante chão, sopraram nova essência para os movimentos históricos. E a chita virou marca, tecido porreta, o belo e o feio no país que nasceu contraditório. Transitou na corte, no baixo clero, virou discurso de quem tanto quer causar quanto desaparecer na multidão, a depender da estampa. Vestido de princesa ou toalha de mesa, madame? Mas foi justamente à mesa a maior das delícias do matrimônio que nos inventou, reinventou e, é claro, danou de também recriar o que veio de tão longe. Impossível não notar que a culinária brasileira versa sobre a nossa cultura tal qual a música, os pincéis, os corpos em balanço. E a Índia não se intimidou quando convidada a invadir o cardápio.
Ora, o comércio das especiarias nos entregou, no começo de tudo, a pimenta-do-reino, a noz-moscada, o gengibre, o cravo, a canela. Ou seja, nascemos assim, crescemos assim, somos mesmo assim, vamos ser sempre assim – plenos de sabores e aromas que inspiram a arte e os costumes. “No tabuleiro da baiana tem. Vatapá, caruru, mungunzá, tem umbu pra iôiô.”. E quem há de negar que a Índia foi incremento para este paladar eternizado na voz de Carmem Miranda? Já as frutas indianas viraram autênticos discursos de um Brasil que, mais à frente, se quis grande e bronzeado para mostrar o seu valor. As nossas morenas ganharam cor de jambo na praia, o coco – da cocada, cuscuz e dos manjares – virou Aquarela, dádiva do tronco forte aonde Ary Barroso amarrou a sua rede nas noites claras de luar. Mas nenhuma outra nos fez a República que viramos, de democracia ‘vezenquando’ vacilante, quanto a banana. Yes, nós temos! Para dar, vender, engordar e, quiçá, crescer. Inda houve três árvores asiáticas que, de batuque em batuque, quem diria?, deram o toque de mestre à receita do carnaval. A mangueira inspirou certa supercampeã Estação Primeira, do verde e manga-rosa inconfundíveis. E o “Corta-jaca”, de Chiquinha Gonzaga, que escandalizou os conservadores quando executado no Catete? Sim, ele é filho da mesma jaqueira que encantou o voo seminal da Águia Altaneira de 22 carnavais vitoriosos. Para completar, um obrigado do fundo do nosso quintal para quem, à sombra da tamarindeira, caciqueou por dias a fio e, incansável, só foi parar na cinzenta quarta-feira.
Já esta brincadeira não cessa agora. Prepare o seu coração pro que eu vou contar: bem mais de século faz que, sob o mesmo signo da transação com temperos, o boi Zebu indiano também cá desembarcou, sujeito e predicado, valioso de tudo. Corcova alta ou cupim, cabeça no lugar, sábio fazedor-pensador da vida, em nosso pedaço se pôs até a filosofar sobre os homens – estes que, coitados, não sabem ouvir “nem o canto do ar, nem os segredos do feno” – incapazes, portanto, de perceberem outro ambiente, que não o da própria razão. O Zebu, pelo contrário, fez daqui o seu novo mundo, virou brasileirinho, cultura popular, economia vigorosa e até poesia matuta. Quem não sabe do formigueiro que picou o animal preguiçoso que só queria ‘cuchilá’ à sombra do juazeiro? Do rio Ipojuca, mestre Vitalino consagraria o boi que veio da Ásia na arte sertaneja, forjando e cristalizando do barro, com as mãos, a imagem de um torrão do Nordeste que escorreu aos quatro cantos a partir do fuzuê da feira de Caruaru. Sagrado para quem fica do outro lado do mar, o bicho à brasileira é Guzerá, Indubrasil e, na criatividade das manifestações, Mansinho, de Mamão, Bumba-Meu-Boi, Boi-Bumbá, ah., e o que mais a imaginação dessa gente puder tratar de misturar. Eis aí o nosso charme. E também destino. Indeléveis.
Mas destino mesmo é o de sermos independentes, tal qual a Mocidade, assim eternizada em pia batismal, palco desse casamento sem fronteiras aqui. Gente é pra brilhar, para ser livre pelas veredas concretas da paz, sábia senhora, via dos inquietos, dos sonhadores, dos inconformados diante da desordem das coisas e desse mundo louco. A desobediência civil pacífica do líder Mahatma Gandhi, que encontrou no calor da resistência não armada a senha da liberdade de seu país, foi semente, perfume e tempero indianos de senhora pregnância. E ressonância. Viramos, e fomos, e somos, e seremos todos Filhos de Gandhi, cujo Afoxé exubera axé, e filhos do axé de nossos próprios mensageiros de luz nacionais. De Betinho, com quem sonhamos em regresso no barco da volta, passando por Gentileza e sua urbana poesia naïf saída do fogo, até Mãe Menininha do Gantois, Chico Xavier, Chico Mendes, Dom Hélder Câmara, Abdias do Nascimento, Irmã Dulce, Mãe Beata de Iemanjá. Tantas, tantos. Pinta o rosto, meu amor, igualzinho ao que ocorre no milenar festival Holi, das Cores, na Índia, que celebra o triunfo do bem sobre o mal. Chama todo o pessoal e manda descer pra ver: hoje é carnaval!
Nesse fraterno banho-ritual de mitos em águas de aproximação, Ganges então se funde com outro rio em igual medida abençoado, nosso Rio de Janeiro, mas também de fevereiro, março, abril – do famoso requebro febril – semeado pela velha Guanabara mater por onde um dia desembarcou o navegante que partira com olhos de cobiça. Assim, voltamos ao começo, à descoberta que se tornou mescla, e a história faz um círculo descrevendo a simbologia da mandala, no girar da roda do tempo que nunca para. Eis o completo entrelaçar de mensagens, sonhos e sagas de dois povos, Brasil e Índia, sob o cuidado atento de alguém que, sagrado e superior, inclusivo e sincrético, nos legou justamente a mensagem dos citados pacifistas e o autoconhecimento para decodificarmos a gramática percussiva dos nossos corações, por vezes tão vagabundos. Foi um profeta Maluco Beleza que nos contou certa vez sobre este ser divino que é em si filosofia de vida para quaisquer recantos e crenças, sob formas, feições e tambores variados. Alguém que, feito da terra, do fogo, da água e do ar, tudo vê e, mais longe: tudo é. A luz das estrelas, a cor do luar, a mãe, o pai, o avô. O filho que ainda não veio. O início, o fim e o meio.
Fábio Fabato
SETORES
1) Eram os deuses abre-alas.
2) Segredos de uma “Índia” com bons selvagens
3) Colônia lusitana com fragrância asiática
4) Identidade e poesia em mesa farta
5) Nosso boi brasileirinho
6) Gandhi e os mensageiros da paz
“Enredo dedicado ao Movimento Autofagia Independente, que despertou ainda mais a essência que habita em mim para a essência da Mocidade.” (Alexandre Louzada)
“Texto dedicado aos Trindades da Mocidade, figuras e energias que criaram, mantêm e encantam os destinos da escola.” (Fábio Fabato)